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Diversidade é normalidade

Conversando com as leitoras da revista Marie Claire, a jornalista Priscilla Geremias ressalta a importância de entender o público como diverso e não padronizado

Assim como vários outros nichos na comunicação, o jornalismo feminino pode ser definido considerando aspectos diferentes. Com um olhar curioso, durante seus, ainda que poucos, anos na profissão, Priscilla Geremias entende a importância desse espaço para levar informações a um público específico: as mulheres.



Priscilla era uma leitora declarada de revistas na adolescência. Gostava de ler página por página e colocar seu nome no expediente das edições. Assim, essa conexão alimentava um sonho dentro dela para que um dia trabalhasse nas redações que tanto admirava. Conforme os anos como estudante de jornalismo na PUC-Campinas foram passando, ela percebeu uma distância cada vez maior de concretizar esse desejo.


"O sonho de revista estava meio morto porque quando a gente está fora desse mercado, parece muito difícil acessar. Tem poucas pessoas que trabalham em revistas, o mercado é maior em outras áreas", comenta.


Após adquirir experiências com assessoria de imprensa, comunicação corporativa e como repórter no G1, a oportunidade para trabalhar em um dos principais veículos femininos do Brasil bateu em sua porta. Sendo indicada para a vaga e passando pelo processo de seleção, Priscilla entrou para a redação da Marie Claire, onde atua como repórter desde 2018.


Como ver um sonho se tornando realidade, ela confessa que sentiu uma forte insegurança quando entrou para um veículo tão grande e sem muita experiência com a área. Foi aí que Priscilla entendeu que o repertório profissional não era o que a fez entrar para a revista. Afinal, isso é algo que se constrói durante o tempo. Naquele momento, sua bagagem mais valiosa era seu repertório como mulher. Não somente como mulher, mas como mulher negra.


Levantando diálogos, suas vivências e olhares sobre um determinado assunto poderiam alcançar mulheres em todo o país. Com temas que fazem parte do cotidiano das mulheres negras e apresentando questões para as que não são, ela enxerga a inclusão nas páginas. E essa é a sua missão junto com a Marie Claire.


"Tem uma mudança radical de uns anos para cá sobre o tipo de conteúdo. Parecia que os veículos falavam para um tipo de mulher e um tipo de mulher que quase não existe. Então, essa é uma ideia de você ter uma redação diversa, de você trazer suas próprias experiências", aponta.


Equipe diversa para um público diverso

Agora, aos 29 ano, Priscilla observa o aumento nítido na diversidade da equipe, em aspectos como etnia, raça e sexualidade. Ela comenta como isso impacta o resultado final das publicações, que tem considerado mais a pluralidade do público. Afinal, as mulheres que consomem as revistas não são todas iguais.


Cada uma tem uma história e lutas para contar e, ao compartilhá-las, podem agregar muito mais do que imaginam. "Quando você tem vários tipos de mulheres, seja em idade, gênero, raça, sexualidade... a conversa se expande", declara. Além disso, Priscilla também aponta como cada uma pode trazer um repertório diferente sobre assuntos diversos, desde conhecimento sobre lutas feministas até uma nova artista que está fazendo sucesso entre os mais jovens.


De edição em edição, as revistas femininas, incluindo a Marie Claire, parecem deixar para trás cada vez mais aquele antigo padrão feminino. Dessa forma, o veículo passa a falar com mulheres de raças, gêneros e sexualidades diferentes. É uma questão de ampliar o alcance presumindo que não existem apenas mulheres brancas, como é historicamente estampado nas capas das revistas.


"Eu acho que a importância ali, minha e das outras mulheres dentro do trabalho é muito isso. Para fazer com que esse jornalismo deixasse de ser para uma mulher só, já que essa mulher quase não existe", acredita "Entendi depois que tudo bem eu não ter trabalhado em revista porque, nesse espaço, o que importa são as minhas vivências, as minhas diferenças”.


Se distanciando daquele padrão praticamente plastificado, há uma mudança de verdade acontecendo ao assumir um propósito inclusivo. "Eu gosto de usar a palavra ‘diversidade’, mas prefiro pensar em ‘normalidade’. Somos mais mulheres negras, somos mais de 50% da população brasileira".


Conversando com mulheres reais

Observando a mudança acontecendo dentro das redações e entre as páginas, Priscilla comenta que a principal ideia na reforma editorial era rever com quem a revista estava falando. Afinal, quem são as mulheres brasileiras que a Marie Claire almeja alcançar?


Desde 2017, o editorial passou por uma reestruturação sobre as temáticas que seriam abordadas dali para frente. Falar sobre dietas e “como agradar os homens” foram dois tópicos descartados. A redação reforçou o conceito de realmente colocar a mulher no centro das pautas. Direcionar o conteúdo para o bem-estar da mulher.


"Pensar em sexo para que você repense o seu prazer e as suas formas de sentir prazer, não para agradar seu parceiro. Ainda que só se falava em uma relação cis-gênero e não pensava em uma relação entre duas mulheres", aponta. "Isso muda muita coisa. Quando muda o tema, já muda todo o resto".


A heteronormatividade da revista também foi um ponto comentado por Priscilla. Historicamente, pautas sobre relações homossexuais não tinham a mesma visibilidade de hoje. Se desprender dessa bolha também ajudou a Marie Claire no novo direcionamento de conteúdo. "Falar 'mudança de comportamento' e não 'dieta' ou 'bem-estar' e não 'emagreça'".

Entendendo como essa reforma atinge todos os aspectos do editorial, a nova proposta não atinge apenas as editorias de comportamento ou reportagens produzidas pela revista. Isso também conversa com os nichos de moda e beleza. "Isso faz uma mudança brusca, você consegue ver de verdade mulheres que parecem mais as brasileiras. Que cada uma consegue, pelo menos, olhar 100 páginas da revista e se encontra ali de alguma forma", aponta.


Mulheres negras, gordas, indígenas, transexuais e outros grupos de minorias passaram a ter mais presença no editorial. Não se tratava apenas de uma edição especial. De acordo com Priscilla, anteriormente, essas ações "morriam em uma capa só". Agora que isso virou um princípio permanente na redação, ela se aproxima de um público real e não estereotipado.


"Antes, em alguns veículos, acontecia de tipo 'vamos colocar uma capa diferente' ou 'fazer um editorial diferente'. Só que o diferente é a normalidade, não é?", relata. "Quando isso passou a realmente ser o conteúdo, a pauta que acessa essas linguagens, seja visual ou textual, mudou por completo".


Atendendo a uma demanda do público

Para se manter em circulação, um veículo precisa estar engajado com seu público. Dessa forma, a Marie Claire entendeu que deveria caminhar para o plural e não se prender a estereótipos envolvendo assuntos femininos. Por mais que fosse um desafio entender e obter sucesso na tentativa de mudança, a revista percebe sua responsabilidade nisso como um veículo jornalístico para as mulheres.


"É muito louco por que, realmente, tem algumas leitoras antigas que acabam virando haters", revela Priscilla. Embora uma parte considerável da audiência da Marie Claire seja composta por um público mais conservador, Priscilla comenta que o veículo precisa seguir com os seus princípios e entregar nas matérias o que considera necessário para as mulheres.


"Não é por que você não quer que a gente não vai falar sobre isso ou não vai colocar na capa a Mônica Iozzi falando que é a favor do aborto ou colocar a Cleo Pires com uma campanha contra o estupro ou a Bruna Linzmeyer com a axila peluda", enfatiza.

Para ela, a revista reflete os discursos do que está em pauta no momento que é produzida. Isso é algo que não pode ser ignorado. "Aconteceu porque o feminismo estava gritando na rua ou na internet que assim 'queridos, a gente não vai mais aceitar'. E aí começa o 'meu corpo minhas regras', campanhas contra o assédio e a favor da descriminalização do aborto", diz. "Os veículos que falam com mulheres não podem ficar distantes disso".


Assim, o veículo vem tentando atrair o público mais jovem e dialogar sobre as questões levantadas, principalmente pelas novas gerações. Feminismo, padrão de beleza, etarismo, racismo e educação sexual são algumas questões que fazem parte desse repertório. Segundo Priscilla, a melhor parte é que esse público se mantém fiel ao título por acreditar nos mesmos valores.


"Quando você coloca uma Lizzo na capa, ela não vai deixar de vender. Ela vai vender muito mais por que é a Lizzo. Uma mulher preta, gorda, cantora de sucesso, ganhadora de prêmios e tá na capa da revista", aponta.


Um acontecimento relatado por Priscilla foi referente a uma capa com a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, publicada em 2019. "Geralmente, escritoras não são muito conhecidas. Ela era porque virou meio que uma 'escritora pop', mas parecia uma bolha. Então quando você coloca isso no papel pensa 'será que vai dar certo?'", diz. "E foi a revista mais vendida do ano".



A partir de situações como essa, Priscilla se conecta ainda mais com o propósito da revista em trazer conteúdos relevantes para o público feminino, abrangendo diversas editorias. Dando uma volta ao passado, ela aponta como a origem da revista reflete no que ela é hoje. Nascendo na França durante a década de 30, a Marie Claire surgiu para ser um veículo que fica ao lado das mulheres.


Uma reflexão sobre a mulher negra e o feminismo

Trabalhar com jornalismo é ingressar em uma jornada para ouvir histórias e compartilhá-las. A cada nova descoberta, a percepção do profissional também pode ir mudando. No caso de Priscilla, ela afirma que sempre se declarou uma mulher feminista sem pensar duas vezes. Porém, conhecendo novos movimentos e significados através do trabalho na Marie Claire, ela tem repensado sobre sua própria bolha.


"Entrevistei uma pessoa e perguntei 'você é feminista?' e ela disse 'não'", conta. "E não é simples dar essa resposta. Não é que ela seja contra os direitos das mulheres ou a essa luta, mas ela me fez perceber que existem outros nomes. Outros movimentos que talvez se encaixem mais com o que eu acredito e que talvez eu nunca tenha percebido".


Com essa entrevista, a pauta era sobre o mulherismo, que questiona a opressão racial e de gênero das mulheres negras. As fontes entrevistadas por Priscilla foram mulheres negras que levantavam a bandeira para essa questão. Para ela, isso expandiu seu olhar para fora da bolha do feminismo, principalmente, considerando que é um movimento originalmente pensado para mulheres brancas.


Acreditando mais no feminismo negro e intersecional, que inclui mulheres trans, negras e indígenas, Priscilla comenta que não dá para se declarar apenas "feminista" com a quantidade de lutas diferentes enfrentadas pelas mulheres. É preciso nichar, pois são processos diferentes. "O movimento nunca foi pensado para uma mulher como eu", aponta.


"Da forma como ele nasceu, foi para que mulheres brancas seguissem trabalhando e fossem para fora de suas casas trabalhar. Enquanto isso, mantinha mulheres negras em um sistema de escravização em que elas ficavam dentro da casa dessas mulheres brancas para cuidar dos filhos, cozinhar e limpar".


Conforme vai descobrindo novos movimentos, Priscilla compartilha essas histórias com as leitoras da revista. Por mais que a Marie Claire seja uma revista apartidária e ela não, suas ideias convergem com as mesmas bandeiras em prol das mulheres. Ambas seguem atuando com a mesma missão.


O propósito de um veículo feminino para mulheres negras

Embora não tenha uma matéria favorita e esteja sempre aguardando um novo assunto para dissertar, Priscilla tem um texto que marcou seu trabalho na Marie Claire. A pauta em questão era sobre tranças e cabelos crespos. Depois de muita pesquisa sobre o assunto, ela compôs uma matéria falando sobre a origem do penteado retratado como tendência. Por outro lado, o maior desafio foi incluir a si mesma nas entrelinhas.





"Tive que falar muito sobre mim. Foi um texto meio pessoal, era uma reportagem, mas pessoal, sabe? Tinha que me entregar um pouco ali", comenta sobre o texto publicado em 2020. "Parecia meio estranho ser super pessoal o texto, mas foi aí que as pessoas se identificaram".


Até hoje, Priscilla recebe mensagens e e-mails de leitoras que se emocionaram com a matéria de alguma forma. "Direto vem alguém falar para mim que se você tem trança ou dread seu cabelo é sujo. Ou então que é só para deixar o visual bonito. Mas significa muito mais que isso", acredita.


Situações como essas reforçam para Priscilla o potencial de uma revista ao selecionar diálogos para iluminar. Entendendo o propósito vinculado a pluralidade, o veículo se aproxima de um público mais diverso. "São bandeiras que a revista levanta em prol dos direitos das mulheres. Isso caminha com muitas coisas das quais eu acredito".


Apesar disso, ela reconhece que é uma longa jornada pela diversidade, já que isso engloba muito além de uma única minoria. Assim, também não deixa de fazer uma autocrítica. "Talvez se tivesse uma mulher com deficiência na nossa redação, essa pauta já estaria direto no nosso radar. Acho que é inclusiva da redação ao papel, mas ainda pode ser mais".

Em um país tão extenso como o Brasil, há mulheres diferentes a cada esquina. Conforme a redação também vai se diversificando, a revista atinge mais pessoas. Principalmente, um público, historicamente, com menos visibilidade pela mídia. "Me motiva ver que tem outras mulheres negras que precisam ter alguém ali pensando por elas, pelas pautas delas, para que a gente não esqueça dessas mulheres em uma bolha homogênea".


Abraçando as diferenças, a revista reforça seu papel como fonte de informação para todas as mulheres. "Tem gente para, de verdade, trazer suas diferenças ali", declara. "É muito legal receber uma mensagem como 'eu vi sua matéria' ou 'mudou minha percepção'. Esse é o caminho".

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