
Jornalismo feminino semeando revoluções
Após trilhar pelo jornalismo, a agora psicóloga, Déborah de Paula Souza explica os impactos das revistas femininas como porta-voz das mulheres brasileiras
Concedendo um olhar metafórico aos significados, qualquer árvore madura hoje em dia já foi uma semente no passado. De semente em semente, diálogos foram crescendo na sociedade. Perspectivas diferentes, renovadas e inovadoras são como galhos que aumentam o tamanho dessa árvore com o passar dos anos.
Se enxergarmos a mídia como quem rega essa planta, o jornalismo tem o potencial para ampliar conversas. Sendo uma admiradora desse mecanismo, Déborah de Paula Souza vagou pelo jornalismo ajudando a plantar tais semestres por meio de um nicho muito específico: as revistas femininas.

Participando das redações dos títulos Marie Claire e Claudia, ela acumulou histórias e experiências dialogando com o público feminino. Acima de tudo, fazendo parte dos primeiros passos de veículos importantes não apenas para o jornalismo brasileiro, mas para a vida de muitas mulheres. Apaixonada pela escrita, ela mostrou camadas além da superfície das palavras com este trabalho.
Seu ingresso na faculdade ocorreu aos 17 anos, quando entrou para a primeira turma do curso de jornalismo na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Indecisa entre a carreira na comunicação e uma graduação em teatro, ela acabou optando por seguir no jornalismo, um caminho que acabou deixando eventualmente.
Hoje, aos 62 anos, Déborah trabalha como psicanalista há mais de uma década, atendendo adultos e adolescentes em seu consultório na cidade de São Paulo. Embora não atue mais como jornalista, sua paixão pela escrita e o mundo artístico continua viva até hoje. Neste ano, ela lançou um livro de poesias intitulado Vermelho Vivo.
Por mais que tenha sido um capítulo encerrado, sua trajetória no jornalismo marca sua história não apenas no sentido profissional, mas como mulher. Na década de 90, Déborah foi uma das jornalistas que atuou na implantação da revista Marie Claire no Brasil. De origem francesa e popular no continente europeu, o título chegou no território brasileiro com um recorte diferente sobre as questões do universo feminino.
O jornalismo feminino com outros olhos
Durante seus anos na faculdade, Déborah tinha certeza de que queria trabalhar com escrita. Com isso, veio o desejo de entrar para uma redação. Por outro lado, o interesse por revistas femininas era quase nulo. Na percepção dela, havia um preconceito muito grande sobre as revistas, advindo de uma cultura machista. Inconscientemente, ela admite que também aderiu a essa perspectiva.
"Eu fui entendendo o que era o jornalismo feminino trabalhando em revista. Entendendo também o grande machismo que havia nas editoras, que consideravam jornalismo feminino uma coisa menor. Talvez eu também considerasse quando eu estava na faculdade", confessa.

Logo que se formou no curso, foi trabalhar em um jornal distribuído para empresários e confeccionistas da indústria têxtil. Embora tivesse um recorte completamente mercadológico, acabou sendo os primeiros contatos de Déborah com o universo da moda no sentido profissional. Com um olhar único e diferente sobre esse nicho, não demorou muito para que encontrasse um espaço de atuação com o assunto.
Atenta ao que chamava a atenção na época, Déborah produziu uma matéria comentando sobre o desfile histórico da escola de samba Beija-Flor, organizado pelo carnavalesco João Clemente Jorge Trinta, popularmente conhecido como Joãosinho Trinta. A apresentação retratou um contraste entre pobres e ricos, contextualizando questões de luxo e privilégio no Brasil.
Considerando que, o que acontecia no mundo da moda advinha de muita influência europeia, Déborah fez um paralelo com os desfiles de Paris. "Eu fiz esse comentário de que talvez fosse interessante olhar para a passarela da escola de samba, onde existe um carnavalesco genial", disse. A publicação acabou chamando a atenção de Regina Lemos, que viria ser a diretora da Marie Claire na época.
"Quando eu cheguei para a primeira redação de Marie Claire, a gente começou a trabalhar em uma revista que chamava Moda Brasil, porque a diretora estava chamando as pessoas para ver como ia funcionar". Conforme esse laboratório do que seria a Marie Claire brasileira foi se solidificando, a revista surgiu oficialmente no início dos anos 90.

Naquele período, já existiam outros veículos femininos circulando no Brasil há anos. A revista Claudia, por exemplo, já existia desde a década de 60. Por já existir em outros países, a Marie Claire precisou entender como seria adaptar seu formato para as mulheres brasileiras. "A ideia era fazer um pouco a reportagem num âmbito subjetivo e dar uma escuta para as mulheres. Era um jornalismo voltado para depoimentos de experiências".

Ao mesmo tempo, outra questão também interferiu nessa movimentação: o surgimento das faculdades de moda no Brasil. Segundo Déborah, isso fez com que o nicho fashionista ganhasse um novo olhar voltado para o comportamento. A moda deixava de ser exclusiva ao eixo do consumo e passava a ser trabalhada com subjetividade pela mídia brasileira. "Era uma revista muito inteligente, muito ligada no que estava acontecendo no momento", diz.
Uma espécie de empoderamento figurado
Durante seus anos como jornalista, Déborah andou entre idas e vindas nas redações das revistas Claudia e Marie Claire. Esboçando gratidão especialmente por essa última, ela comenta sobre o time de redatoras que deu início ao veículo no território brasileiro e como isso teve seu diferencial. "A equipe que foi reunida ali era de mulheres incríveis, desculpa a minha falta de modéstia. Mas assim, eu aprendi muito com essas mulheres, com todas as editoras".
"Na época acho que tinha só um editor homem, então as pautas ligadas ao feminismo, ao direito da mulher, as experiências femininas, tinham um olhar sobre o mundo por uma perspectiva da mulher", continua. Embora hoje seja visto como uma ferramenta de força ao público feminino, a revista não tinha esse objetivo. Pelo menos, não explicitamente.
"Essa palavra, o ‘empoderamento’, chegou muito depois. Na época, a ideia não era falar teoricamente sobre os movimentos. A ideia era ouvir as mulheres e o que elas tinham a dizer. Inclusive, eu acho que esse é um diferencial, porque a subjetividade feminina estava colocada ali. Tinha um tom de testemunho. Testemunhos das vidas vividas por aquelas mulheres", explica.
Nos veículos que trabalhou, Déborah ocupou as editorias de moda e comportamento, explorando diversos assuntos dentro destes ambientes. Para ela, a concepção principal da Marie Claire era trazer histórias de mulheres e assuntos importantes para o público feminino. Não de forma teórica ou como "palavra de ordem", mas de um jeito mais convidativo.
Além de falar sobre mulheres em postos de comando, a revista também buscava alcançar aquelas que estavam longe dessa realidade. "Tinha também a experiência de mulheres que estavam, por exemplo, em casamentos que não funcionavam mais e que queriam experimentar novas formas de amar. Mulheres que se apaixonaram por mulheres, mulheres que estavam querendo descobrir novas formas de espiritualidade, não se encaixavam nas igrejas formais e estavam buscando coisas que, na época, começava a se chamar de 'new age'".

Dessa forma, a contextualização histórica da Marie Claire no Brasil é importante por refletir um momento transgressor em prol da liberdade feminina. Quase como sementes do que viria a se firmar o discurso de "o lugar da mulher é onde ela quiser". Por mais que não fosse uma revista política, editorias como moda, beleza, reportagem, viagem e cultura se posicionavam politicamente de outra forma.
"Não de uma forma ligada a política eleitoral. Ela era uma política voltada para a liberdade da mulher, para as possibilidades que a mulher tinha e tem. Era uma afirmação do feminino, uma afirmação em muitos níveis", explica. Seguindo esse formato de posicionamento, Déborah ressalta que era um desejo de colocar aspas em relatos reais sobre o cotidiano.
Por mais que a Marie Claire se distanciasse de um jornalismo onde a prioridade eram falas de teóricos ou especialistas, a redação buscava semear repertório para as leitoras. "Para você ter uma ideia, eu lembro que fiz uma matéria sobre o Nietzsche. Então você tem uma revista que abre espaço para falar de um filósofo. Por quê? Porque ele tinha ideias libertárias” comenta. “Não era um artigo acadêmico, era uma matéria apresentando Nietzsche naquilo que ele podia trazer de interesse para as mulheres naquele momento”.
No ponto de vista de Déborah, o jornalismo factual e o popular hardnews tem uma importância imensa, mas não sustenta a comunicação em um contexto geral. Por isso, histórias reais e abordagens mais subjetivas cumprem a missão de se conectar ao espectador. No caso da Marie Claire, o objetivo era criar uma rede de apoio as mulheres. "Eu acho que o legado da revista é voltado para a liberdade feminina, para o feminismo, para as pautas feministas e para os direitos da mulher".
De matéria em matéria, a Marie Claire dava espaço para temas importantes com leveza nas abordagens. Considerando o contexto histórico na qual surgiu, a revista seguiu trazendo assuntos do universo feminino com um recorte transgressor. Os temas percorriam de tendências de beleza até tópicos mais distantes desse nicho, como a ecologia.
"Eu lembro de ter editado uma matéria sobre a questão do lixo, eu e uma outra editora. Como é que a gente ia abordar a questão da reciclagem do lixo? Era o começo dessa história. Ainda tinha que ganhar as pessoas para isso. Como falar de lixo numa revista linda, com um papel maravilhoso, um padrão estético?", conta.
"Então, a gente fez uma matéria toda voltada para a questão da necessidade de reciclar todos os resíduos, como a reciclagem emocional. Sobre o que você faz com o seu lixo, era uma pergunta para o mundo e continua sendo".

Outro tópico que Déborah destacou foi sobre a representação da mulher negra na revista. Destacando o racismo estrutural que marca a história do Brasil, ela comenta como pautas relacionadas a negritude demoraram para ganhar destaque na mídia. Devido a esse fator histórico, isso reflete no jornalismo até hoje. Por outro lado, embora escassamente, a Marie Claire começou a trabalhar assuntos do cotidiano da mulher negra.
Com isso, Déborah se recorda de uma matéria produzida por uma colega jornalista na revista. “Era uma matéria linda, com mulheres incríveis, com testemunhos impactantes. Falavam desde toda a questão do racismo, mas também de conexões que talvez só uma revista feminina pudesse fazer. Por exemplo, as questões do cabelo. O que as mulheres negras faziam com o cabelo para afirmar a negritude ou alisar o cabelo para caber dentro de padrões estéticos”, garante.
Artistas revolucionários ganharam espaço no editorial
Quando começou a ser publicada, as capas da Marie Claire não tinham artistas. Conforme o tempo foi passando e o apelo comercial, principalmente com novelas, cresceu, a revista trouxe mais entrevistas com figuras conhecidas da época. Por exemplo, uma das primeiras capas nesse formato foi com a Xuxa.
Relembrando entrevistas marcantes durante o período na redação, Déborah recorda quando conversou com Cássia Eller. A entrevista aconteceu poucos meses antes da artista vir a falecer, em dezembro de 2001. "Acho que eu fiz a última grande entrevista com a Cássia Eller", comenta. "Uma das pautas ali era o fato dela ter casado com uma mulher. De como foi ela crescer em Brasília, como foi na adolescência dela, como foi dentro da família dela ela namorar meninas e gostar de mulheres".
Na época, Cássia era casada com Maria Eugenia Vieira Martins. Antes da união, a icônica cantora brasileira já tinha tido seu filho, Francisco Ribeiro Eller. Apelidado de "Chicão", ele foi fruto do relacionamento de Cássia com o baixista Tavinho Fialho, que faleceu uma semana antes do nascimento do filho devido a um acidente de carro. Para a surpresa de Déborah, sua entrevista foi importante para o processo sobre a guarda de Chicão quando Cássia faleceu.
"O advogado pediu a fita onde estava dito pessoalmente na voz da Cássia, que se algo acontecesse com ela algum dia, quem era a mãe do Chicão era Eugênia", relata. "Então assim, eu acho que isso ilustra um pouco a importância das palavras que a revista recolheu. As palavras da afirmação, da liberdade em todos os níveis".

Outra figura que Déborah também entrevistou para a Marie Claire foi o cantor Gilberto Gil em meados dos anos 90. Acompanhando o artista por cerca de três dias, ela produziu uma reportagem que abordava sexualidade, política e negritude. Em 1980, ele foi eleito vereador na cidade de Salvador. "Na época, os opositores dele na Bahia colocaram para atacá-lo uma foto dele do Caetano [Veloso] se beijando na boca, um selinho. Eu perguntei sobre isso, e ele falou "eu achei maravilhoso! Imagina eu e Caetano se beijando?".
Revistas femininas semeando revoluções
Não escondendo o sentimento de orgulho pelo trabalho realizado na Marie Claire, ela reconhece o impacto da revista refletindo atualmente na mídia. Feminismo, racismo, liberdade sexual e muitos outros temas não são uma novidade para a jornalista. Segundo ela, a revista trabalhava esses assuntos desde os anos 90. Por mais que atuasse com um recorde suavizador, Déborah explica que a leveza foi importante para os futuros movimentos.

Para ela, foi fundamental entender que grande parte do público feminino ainda não conseguia enxergar a problemática de uma sociedade machista. Ou se quer entendiam o que, de fato, era o machismo e até onde ele pode prejudicar a liberdade da mulher. "A gente ouvia os barulhos sociais, mas a gente também ouvia aquela coisa de estar quase em segredo. Eu acho que essa escuta de ouvir o segredo, a dor em segredo, aquela a vergonha, as humilhações".
"O feminino foi muito humilhado. A luta pela libertação feminina acontece até hoje. A gente está vendo aí as questões de feminicídio que estão gritando. Como é que no século 21 ainda tem tanto feminicídio? Matança de mulheres, matança de gays. É uma loucura", diz. Dessa forma, a revista foi plantando sementes que floresceram com o tempo. "Uma camada mais quieta, menos estrondosa, mas que, se pudesse ser escutada, faria movimentos barulhentos mais a frente". Dito e feito.
Embora retratar a força feminina de uma forma explícita seja importante para inspirar diretamente, Déborah comenta como mostrar a fragilidade e a sensibilidade feminina também é um ato empoderador. "O sofrimento da mulher em várias instâncias, mas nunca a mulher colocada como vítima. Um olhar da mulher, quando conta seu sofrimento, para que outras mulheres possam perceber".
Ou seja, a revista também visou atuar para que o público se identificasse entre si. "Tem alguns problemas que as mulheres enfrentam que não diz respeito só a uma biografia particular, mas está inserido numa trama que tem a ver com o papel da mulher no mundo. Um acolhimento da fragilidade", reforça.
Impulsionar uma revolução através do jornalismo nunca foi o objetivo da Marie Claire, mas ela acabou influenciando nesse aspecto através das entrelinhas. Reconhecendo os aspectos positivos e negativos que o veículo apresentou no decorrer dos anos, Déborah considera a revista um fator importante para a liberdade feminina. "É pela igualdade social, no sentido dos direitos. Se o trabalho é igual, quero receber igual. Quero ter direitos iguais, mas também o direito a diferença".
"Eu sinto como eu sinto. Eu amo quem eu amo. Eu vivo minha sexualidade como eu quiser. Então eu acho que esse é o legado que vinga até hoje. Você planta as sementes e algumas morrem no caminho, mas a coisa vinga", conclui.